Uma História Lamentável
– Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski

Três cavalheiros reunidos na casa do conselheiro Stepán Nikíforovitch Nikíforov dialogavam, tarde da noite, até que o jovem general russo Iván Ilítch Pralínskii expressou suas opiniões de cunho social.

Linguagem transformadora

“Está mais do que na hora! Já nos retardamos demais, e, a meu ver, humanidade é a primeira condição; humanidade no modo de tratar os subalternos, pois não se deve esquecer que são homens como nós! A humanidade será a salvação universal e porá tudo nos trilhos…” 

Os demais cavalheiros discordaram das ideias renovadoras do jovem general e, apesar de mantida a cortesia, a discussão gerou desconforto.

Iván acompanhado por Semión Ivánovitch Chipuliénko deixaram a casa do anfitrião e perceberam que o cocheiro, Trifón, havia saído com o trenó.

Decidiu ir andando até a sua residência.

No percurso, percebeu movimentação festiva em uma das casas e foi informado que se tratava da comemoração do casamento de um dos seus funcionários.

Decidiu entrar e pôr em prática suas ideias socialistas humanitárias, defendidas, minutos antes, na casa do conselheiro Stepán.

Preocupado de como seria recebido pelo noivo Porfírii Petróvitch Pseudonimov, preparou-se para evitar convencionalismo, contudo, a sua presença, no primeiro momento, terminou causando inquietação dos presentes.

Conflitos nas relações

Procurava se portar de forma a não criar embaraços aos convidados, e, ao mesmo tempo, censurava as pessoas que estimuladas pelo álcool o tratavam de forma indiferente.

Sem opção para uma saída honrosa perdeu o controle e terminou se embebedando, condição que levou o ilustre intruso a desmaiar.

Diante da condição foi levado a ocupar a cama do casal, que havia sido preparada para a noite de núpcias.

Não bastasse a apropriação da alcova, Iván Ilítch Pralínskii, teve que ser amparado durante a madrugada pela generosa mãe do noivo, que ficou com a incumbência de transitar com um penico, pelos corredores da casa, devido a um incontrolável desarranjo intestinal do jovem general.

Após o ocorrido, Ivan ficou recolhido em sua residência por oito longos dias e, após esse período, retornou ao trabalho, envergonhado, sem saber como se posicionar perante os seus subordinados.

Sentado em uma cadeira exclamou: “Não suportei!”

O autor nos remete à seguinte reflexão: algumas vezes, os valores intrínsecos na consciência terminam por trair princípios sociais defendidos por uma visão humanista e promove um conflituoso sofrimento mental.

A pequena “História Lamentável” contada por Fiódor Dostoiévski é divertida e traz ponderações importantes para o comportamento e senso crítico de que os analisa.

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski

dostoevskij_1872

Nasceu em Moscou, Rússia, no dia 11 de novembro de 1821. Foi o segundo filho do casal Mikhail Dostoiévski e Maria Fiodorovna.

Sua mãe morreu, de tuberculose, quando Dostoiévski tinha 15anos, deixando ele e seis irmãos em companhia do pai. Motivados pela depressão e ao alcoolismo do pai, ele e um dos irmãos foram para a Academia Militar de Engenharia de São Petersburgo.

Existem registros que afirmam que Mikhail foi assassinado por seus servos revoltados com os maus tratos. Outros asseguram que a morte se deu em consequência de um acidente vasculhar.

Fiódor Dostoiévski desejou a morte do pai, por não concordar com o seu jeito autoritário e este fato terminou causando sentimento de culpa e exercendo influência na sua obra.

Morreu em São Petersburgo no dia 9 de fevereiro de 1881, aos 59 anos.

Formação acadêmica

Fiódor Dostoiévski concluiu seus estudos de engenharia em 1843 e obteve a patente de tenente militar. Aprendeu física, matemática e literatura. Estudou as obras do alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann, dos franceses Blaise Pascal e Victor Hugo, e do inglês William Shakespeare.

O escritor francês Honoré de Balzac visitou Dostoiévski em São Petersburgo, em 1844, e a visita resultou em uma tradução o primeiro grande romance de Balzac. Com o dinheiro recebido pelo trabalho quitou uma dívida que tinha com um agiota e despertou a sua vocação pela literatura. Fez outras traduções dentre as quais romances de George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin) considerada uma das maiores escritoras memorialista francesa e precursoras do feminismo.

Início da obra literária

Em 1844, Dostoiévski deixou o exército e dedicou-se exclusivamente à escrita, iniciando o romance epistolar (na forma de carta) ‘Gente Pobre’, que recebeu elogios de influente crítico literário russo, que o considerou uma obra realista com importante visão social. O livro foi publicado em 1846, quando o autor possuía, apenas, 24 anos.

Ainda em 1846 surge o segundo romance titulado ‘O Duplo’ cujo protagonista se apresenta com dupla personalidade. Possivelmente, fruto das perturbações sofridas por Dostoiévski que forma confundidas, na época, como crises epilépticas. Há quem afirme que o escritor sofria de crise histérica. O escritor inclui a epilepsia nas histórias dos seus personagens, como o príncipe Míchkin (“O Idiota”), Kiríllov (“Os Demônios”) e Smerdiákov (“Os Irmãos Karamázov”).

Dostoiévski sofre um revés da crítica ao escrever, em 1848, ‘Noites Brancas’ e ‘Niétochka Nezvánova’. Essas obras enfatizaram o comportamento psicológico dos personagens.

O escritor volta a surpreender quando do seu retorno da Sibéria, onde estava preso, com o livro ‘Recordações da Casa dos Mortos’, publicado em 1862. O respeitado escritor Levi Tostói fez excelentes elogios à obra.

‘Crime e Castigo’, publicado em 1866 e o seu último romance ‘Os Irmãos Karamazov’, publicado em 1881, consagram o escritor com um dos mais influentes da Rússia. O último romance foi considerado pelo criador da psicanálise Sigismund Schlomo Freud como o romance mais bem escrito.

Foco nos conflitos mentais

Por ser uma obra atemporal, muito do modernismo literário e da escola teológica e psicológica sofreu influência da obra do autor. Versa sobre aspectos do estado de espírito que leva ao homicídio, ao suicídio, à loucura, ao sofrimento e por que não dizer à autodestruição.

Neste contexto a obra que recebe os nomes de ‘Memórias do Subsolo”, publicada em 1864, é vista como um marco existencialista. Segundo o filósofo alemão Walter Arnold Kaufmann trata-se da “melhor proposta para o existencialismo já escrita”.

Expatriação na Sibéria

prisao-russa-1Por participar de reuniões do grupo intelectual Círculo Petrashevski e ter lido em público uma carta aberta do escritor e filósofo russo Vissarion Grigorievich Bielinsk dirigida ao escritor, também russo, Nikolai Gogol criticando-o por suas visões políticas e sociais conservadoras, Dostoiévski foi acusado de conspirar contra o imperador Nicolau I da Rússia e Grão-Duque da Finlândia. O Círculo Petrashevski se dedicava a debater as condições de vida na Rússia.

Em 23 de abril de 1849, o escritor foi preso juntamente com outros membros do Círculo Petrashevski. Passou oito meses na Fortaleza de Pedro e Paulo até que, em 22 de dezembro, houve a sentença de morte por fuzilamento.

Em 23 de dezembro, o escritor foi levado ao lugar da execução juntamente com outros membros do grupo e amarrados aos postes em frente ao pelotão. Antes da execução por fuzilamento, chegou uma ordem do Czar para que a pena fosse substituída por prisão com trabalhos forçados e exílio, na Sibéria.

Após a prisão, Dostoiévski começou a contemplar a vida como um dom extraordinário, ao contrário do determinismo e do pensamento materialista. Valorando a responsabilidade individual, a integridade física e mental além da liberdade.

Na prisão, o escritor observa que mesmo em um ambiente completamente inóspito as diferenças sociais existiam.

A soltura de Dostoiévski ocorreu em 1854 condicionada à prestação de serviço no Sétimo Batalhão, por quatro anos, na fortaleza de Semipalatinsk, no Cazaquistão, além de tornar-se soldado por tempo indefinido.

Casamentos, jogos e dívidas

cassino-4Dostoiévski casou-se em fevereiro de 1857 com Maria Dmitriévna Issáieva, mulher pela qual ele havia se apaixonado quando esposa de um conhecido. Com a morte do marido de Maria a união pode ser concretizada. Ela possuía um filho de oito anos e sofria de tuberculose.

Entre 1862 e 1863, viajou a Berlim, Paris, Londres, Genebra, Turim, Florença e Viena. Durante o período das viagens se relacionou com Paulina Súslova, uma estudante de ideias progressistas. Retornou a Rússia sem recursos por ter perdido todo dinheiro em jogos de azar.

Desanimado pela morte de sua esposa e do irmão, teve que sustentar a viúva do irmão e seus quatro filhos, além do enteado Pável Issáiev e o irmão, alcoólatra, Nikolai.

Conheceu a jovem estenógrafa de vinte e quatro anos, Anna Grigórievna Snítkina, e terminou se casando 15 de fevereiro de 1867.

Herança literária e reconhecimento

Dostoiéviski ao lado de Dante Alighieri, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Johann Wolfgang von Goethe, Luís de Camões, Victor Hugo são tidos como escritores que influenciaram sobremaneira a literatura do século XX. Particularmente, Dostoiévski influenciou as obras dos escritores Hermann Hesse, Marcel Proust, William Faulkner, Albert Camus, Franz Kafka, Yukio Mishima, Roberto Arlt, Ernesto Sábato e Gabriel García Márquez.

A obra

Fiódor Mikhailovitch Dostoiévskié é autor dos romances Gente Pobre (1846), O Duplo (1846), Noites Brancas (1848), Netochka Nezvanova (1849), O Sonho do Tio (1859), Aldeia de Stiepantchikov e seus Habitantes (1859), Humilhados e Ofendidos (1861), Recordações da Casa dos Mortos (1862), Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Jogador (1867), O Idiota (1869), O Eterno Marido (1870), Os Demônios (1872), O Adolescente (1875) e Os Irmãos Karamazov (1881).

Escreveu as novelas e os contos Senhor Prokhartchin (1846), Romance em Nove Cartas (1847), A Senhoria (1847), Polzunkov (1848), Coração Fraco (1848), O Ladrão Honesto (1848), Uma Árvore de Natal e uma Boda (1848), O Homem Debaixo da Cama (1848), Noites Brancas (1848), O Pequeno Herói (1849), Uma História Lamentável (1862), O Crocodilo (1865), Bóbok (1873), Uma Criatura Gentil (1876), O Mujique Marei (1876), e O Sonho de um Homem Ridículo (1877).

Referência bibliográfica

uma-historia-lamentavel-1Dostoiévski, Fiodor, 1821-1881.
Uma história lamentável / Dostoiéviski; tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira.
2. ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
(Coleção Leitura)
101p.
ISBN 85-219-0225-5
1. Contos russos. I. Título. II. Série.
(R)

Um comentário

  1. Acabei de ler o conto.
    A impressão que tive foi que o autor russo deixava um recado nas entrelinhas que essa “abrupta” aproximação do aristocrático com o populacho não seria benéfica para nenhum dos lados. Um lado ficando no final completamente endividado e o outro desmoralizado.

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