Escrito no contexto histórico da Rússia Czarista, sob o comando de Alexandre II, cujo governo antiliberal defendia privilégios da aristocracia, o autor, que viveu o regime e suas consequências, escolheu uma linguagem simbólica para satirizar a burocracia russa, lhe atribuindo uma crítica impiedosa, contrastando com a concepção do modelo capitalista.
Aristocracia e capitalismo
Dostoiévski elege uma sofisticada galeria em São Petersburgo, um funcionário público, um imigrante alemão e seu crocodilo para simbolizar a aristocracia, a burocracia governamental, e o regime capitalista, sem se descuidar das críticas e opiniões do narrador, Siemión Siemiônitch, que se inclui na história intrometendo-se nos diálogos, registrando situações, valores, conceitos e interesses dos personagens que giram em torno do protagonista.
Engolido pelo capitalismo
Em companhia da esposa e do narrador, em rápida passagem pela galeria onde o crocodilo estava sendo exposto à visitação, o funcionário público Ivan Matviéitch é engolido inteiro pelo réptil.
Daí em diante os conflitos de interesse do protagonista e dos que o cercam são contados na forma metafórica, a exemplo do que ocorreu no livro Metamorfose, escrito por Franz Kafka.
Ivan, na barriga do crocodilo, preocupa-se com as opiniões dos seus superiores, enquanto o seu experiente amigo, Timofiéi Siemiônitch, avalia a necessidade do seu sacrifício para estimular os investimentos estrangeiros e beneficiar a pátria.
O dono do animal, por sua vez, percebeu uma grande oportunidade de lucro.
Afinal, ao engolir o russo e mantê-lo vivo, o crocodilo majorou o seu valor de mercado, além de aumentar as receitas devido ao crescente número de visitantes na galeria.
Oportunidade e poder
Enquanto o proprietário do animal vislumbrava sucesso financeiro, o protagonista percebeu uma oportunidade de se tronar famoso e exercer cargos importantes na estrutura governamental, tão logo deixasse aquela situação.
Ele diz: “(…) sou exposto perante todos e, ainda que escondido, estou em primeiro lugar. Passarei a instruir a multidão ociosa. Ensinando pela experiência, apresentarei com a minha pessoa um exemplo de grandeza e espírito conformado perante o destino! Serei, por assim dizer, uma cátedra da qual hei de instruir a humanidade. São preciosas mesmo as informações sobre o mostro por mim habitado. E, por isto, não só não maldigo o caso que me aconteceu, mas tenho até sólidas esperanças na mais brilhante das carreiras.”
Relação metafórica com os fluxos capitalistas
“Deste modo, alimentando o crocodilo com a minha pessoa, eu recebo dele também alimento; depreende-se, pois, que nos alimentamos mutuamente.”
Ivan, na qualidade de funcionário público burocrata, avalia-se no sistema capitalista, aqui representado pelo crocodilo, e conclui sobre a dificuldade de ser aceito.
Refere-se, no sentido figurado, à inexistência de estômago no animal como intolerância do sistema a custos que oneram os processos produtivos.
“Mas, considerando que, mesmo para um crocodilo, é difícil digerir uma pessoa como eu, ele deve sentir, nessa ocasião, certo peso no estômago – estômago que ele, diga-se de passagem, não tem -, e eis a razão por que, preocupado em não causar uma dor supérflua ao mostro, eu raramente me viro.”
A narrativa apresenta um importante relato político com ênfase nos anseios sociais voltados para alterações estruturais, sem se descuidar da insegurança trazida por mudança de paradigma.
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski
Nasceu em Moscou, Rússia, no dia 11 de novembro de 1821. Foi o segundo filho do casal Mikhail Dostoiévski e Maria Fiodorovna.
Sua mãe morreu, de tuberculose, quando Dostoiévski tinha 15anos, deixando ele e seis irmãos em companhia do pai. Motivados pela depressão e ao alcoolismo do pai, ele e um dos irmãos foram para a Academia Militar de Engenharia de São Petersburgo.
Existem registros que afirmam que Mikhail foi assassinado por seus servos revoltados com os maus tratos. Outros asseguram que a morte se deu em consequência de um acidente vasculhar.
Fiódor Dostoiévski desejou a morte do pai, por não concordar com o seu jeito autoritário e este fato terminou causando sentimento de culpa e exercendo influência na sua obra.
Morreu em São Petersburgo no dia 9 de fevereiro de 1881, aos 59 anos.
Formação acadêmica
Fiódor Dostoiévski concluiu seus estudos de engenharia em 1843 e obteve a patente de tenente militar. Aprendeu física, matemática e literatura. Estudou as obras do alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann, dos franceses Blaise Pascal e Victor Hugo, e do inglês William Shakespeare.
O escritor francês Honoré de Balzac visitou Dostoiévski em São Petersburgo, em 1844, e a visita resultou em uma tradução o primeiro grande romance de Balzac. Com o dinheiro recebido pelo trabalho quitou uma dívida que tinha com um agiota e despertou a sua vocação pela literatura. Fez outras traduções dentre as quais romances de George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin) considerada uma das maiores escritoras memorialista francesa e precursoras do feminismo.
Início da obra literária
Em 1844, Dostoiévski deixou o exército e dedicou-se exclusivamente à escrita, iniciando o romance epistolar (na forma de carta) ‘Gente Pobre’, que recebeu elogios de influente crítico literário russo, que o considerou uma obra realista com importante visão social. O livro foi publicado em 1846, quando o autor possuía, apenas, 24 anos.
Ainda em 1846 surge o segundo romance titulado ‘O Duplo’ cujo protagonista se apresenta com dupla personalidade. Possivelmente, fruto das perturbações sofridas por Dostoiévski que forma confundidas, na época, como crises epilépticas. Há quem afirme que o escritor sofria de crise histérica. O escritor inclui a epilepsia nas histórias dos seus personagens, como o príncipe Míchkin (“O Idiota”), Kiríllov (“Os Demônios”) e Smerdiákov (“Os Irmãos Karamázov”).
Dostoiévski sofre um revés da crítica ao escrever, em 1848, ‘Noites Brancas’ e ‘Niétochka Nezvánova’. Essas obras enfatizaram o comportamento psicológico dos personagens.
O escritor volta a surpreender quando do seu retorno da Sibéria, onde estava preso, com o livro ‘Recordações da Casa dos Mortos’, publicado em 1862. O respeitado escritor Levi Tostói fez excelentes elogios à obra.
‘Crime e Castigo’, publicado em 1866 e o seu último romance ‘Os Irmãos Karamazov’, publicado em 1881, consagram o escritor com um dos mais influentes da Rússia. O último romance foi considerado pelo criador da psicanálise Sigismund Schlomo Freud como o romance mais bem escrito.
Foco nos conflitos mentais
Por ser uma obra atemporal, muito do modernismo literário e da escola teológica e psicológica sofreu influência da obra do autor. Versa sobre aspectos do estado de espírito que leva ao homicídio, ao suicídio, à loucura, ao sofrimento e por que não dizer à autodestruição.
Neste contexto a obra que recebe os nomes de ‘Memórias do Subsolo”, publicada em 1864, é vista como um marco existencialista. Segundo o filósofo alemão Walter Arnold Kaufmann trata-se da “melhor proposta para o existencialismo já escrita”.
Expatriação na Sibéria
Por participar de reuniões do grupo intelectual Círculo Petrashevski e ter lido em público uma carta aberta do escritor e filósofo russo Vissarion Grigorievich Bielinsk dirigida ao escritor, também russo, Nikolai Gogol criticando-o por suas visões políticas e sociais conservadoras, Dostoiévski foi acusado de conspirar contra o imperador Nicolau I da Rússia e Grão-Duque da Finlândia. O Círculo Petrashevski se dedicava a debater as condições de vida na Rússia.
Em 23 de abril de 1849, o escritor foi preso juntamente com outros membros do Círculo Petrashevski. Passou oito meses na Fortaleza de Pedro e Paulo até que, em 22 de dezembro, houve a sentença de morte por fuzilamento.
Em 23 de dezembro, o escritor foi levado ao lugar da execução juntamente com outros membros do grupo e amarrados aos postes em frente ao pelotão. Antes da execução por fuzilamento, chegou uma ordem do Czar para que a pena fosse substituída por prisão com trabalhos forçados e exílio, na Sibéria.
Após a prisão, Dostoiévski começou a contemplar a vida como um dom extraordinário, ao contrário do determinismo e do pensamento materialista. Valorando a responsabilidade individual, a integridade física e mental além da liberdade.
Na prisão, o escritor observa que mesmo em um ambiente completamente inóspito as diferenças sociais existiam.
A soltura de Dostoiévski ocorreu em 1854 condicionada à prestação de serviço no Sétimo Batalhão, por quatro anos, na fortaleza de Semipalatinsk, no Cazaquistão, além de tornar-se soldado por tempo indefinido.
Casamentos, jogos e dívidas
Dostoiévski casou-se em fevereiro de 1857 com Maria Dmitriévna Issáieva, mulher pela qual ele havia se apaixonado quando esposa de um conhecido. Com a morte do marido de Maria a união pode ser concretizada. Ela possuía um filho de oito anos e sofria de tuberculose.
Entre 1862 e 1863, viajou a Berlim, Paris, Londres, Genebra, Turim, Florença e Viena. Durante o período das viagens se relacionou com Paulina Súslova, uma estudante de ideias progressistas. Retornou a Rússia sem recursos por ter perdido todo dinheiro em jogos de azar.
Desanimado pela morte de sua esposa e do irmão, teve que sustentar a viúva do irmão e seus quatro filhos, além do enteado Pável Issáiev e o irmão, alcoólatra, Nikolai.
Conheceu a jovem estenógrafa de vinte e quatro anos, Anna Grigórievna Snítkina, e terminou se casando 15 de fevereiro de 1867.
Herança literária e reconhecimento
Dostoiéviski ao lado de Dante Alighieri, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Johann Wolfgang von Goethe, Luís de Camões, Victor Hugo são tidos como escritores que influenciaram sobremaneira a literatura do século XX. Particularmente, Dostoiévski influenciou as obras dos escritores Hermann Hesse, Marcel Proust, William Faulkner, Albert Camus, Franz Kafka, Yukio Mishima, Roberto Arlt, Ernesto Sábato e Gabriel García Márquez.
A obra
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévskié é autor dos romances Gente Pobre (1846), O Duplo (1846), Noites Brancas (1848), Netochka Nezvanova (1849), O Sonho do Tio (1859), Aldeia de Stiepantchikov e seus Habitantes (1859), Humilhados e Ofendidos (1861), Recordações da Casa dos Mortos (1862), Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Jogador (1867), O Idiota (1869), O Eterno Marido (1870), Os Demônios (1872), O Adolescente (1875) e Os Irmãos Karamazov (1881).
Escreveu as novelas e os contos Senhor Prokhartchin (1846), Romance em Nove Cartas (1847), A Senhoria (1847), Polzunkov (1848), Coração Fraco (1848), O Ladrão Honesto (1848), Uma Árvore de Natal e uma Boda (1848), O Homem Debaixo da Cama (1848), Noites Brancas (1848), O Pequeno Herói (1849), Uma História Lamentável (1862), O Crocodilo (1865), Bóbok (1873), Uma Criatura Gentil (1876), O Mujique Marei (1876), e O Sonho de um Homem Ridículo (1877).
Referências bibliográficas
Dostoiévski, Fiódor, 1821-1881
O crocodilo e Notas de Inverno sobre impressões de verão / Fiódor Dostoiévski; tradução de Boris Schnaiderman – São Paulo: Ed. 34, 2000.
168 p. (coleção LESTE)
ISBN 85-7326-186-2
Tradução de Crocodil / Zímnie Zamiétki o Létnikh Vpietchatlêniakh
1.Literatura russa. I. Schnaiderman, Boris. II. Título. III. Série.
(R)