A narrativa começa quando o professor de História, Tertuliano Máximo Afonso, atende à sugestão de um colega e decide por alugar um filme.
Ao assistir a película, cujo objetivo era ajuda-lo a sair da rotina, é surpreendido ao se identificar como sósia de um dos atores.
A rotina
Daí em diante conflitos psicológicos complexos, mais abrangentes que manifestações de apatia ou tristeza, começam a ser revelados.
“…Não é para me meter na sua vida, dissera o de Matemática enquanto descascava uma laranja, mas de há uns tempos a esta parte encontro-o a modo que abatido, e Tertuliano Máximo Afonso confirmou, É verdade, tenho andado um pouco em baixo, Problemas de saúde, Não creio, tanto quanto posso saber não estou doente, o que sucede é que tudo me cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo…”
Inquietude com a semelhança
Tertuliano Máximo Afonso investiga o ator do filme “Quem Porfia Mata Caça” com vistas a identificar suas semelhanças, arquiteta situações inusitadas, trilha caminhos inconvenientes, e se envolve em uma trama difícil de ser desatada.
“…Quem me dera que fosse capaz de atirar este disparate para trás das costas, esquecer-me desta loucura, olvidar este absurdo, aqui fez uma pausa para pensar que o primeiro elemento da frase teria sido suficiente, e depois concluiu, Mas não posso, o que mostra à saciedade a que ponto já chegou a obsessão deste desnorteado homem. ”
Esquizofrenia
O protagonista revela sinais de esquizofrenia ao sofrer controle do personagem criado por ele.
Aceita, com pouca hesitação, a chantagem imposta pelo seu duplo que tinha decidido dormir com Maria da Paz, sua fictícia namorada.
Para que o fato se concretize exigiu do professor a troca de roupas, do carro e objetos pessoais.
Tertuliano Máximo Afonso decide por “matar” António Claro ou, se preferir, Daniel Santa-Clara e após o ocorrido o telefone toca e tudo volta ao começo.
“O telefone tocou. Sem pensar que poderia ser algum dos seus novos pais ou irmãos, Tertuliano Máximo Afonso levantou o auscultador e disse, Estou. Do outro lado uma voz igual à sua exclamou, Até que enfim. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu, nesta mesma cadeira deveria ter estado sentado António Claro na noite em que lhe telefonou. Agora a conversação vai repetir-se, o tempo arrependeu-se e voltou para trás. É o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou a voz, Sim, sou eu, Andava há semanas à sua procura, mas finalmente encontrei-o, Que deseja, Gostaria de me encontrar pessoalmente consigo, Para quê, Deve ter reparado que as nossas vozes são iguais, Parece-me notar uma certa semelhança, Semelhança, não, igualdade, Como queira, Não é só nas vozes que somos parecidos, Não entendo, Qualquer pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar que somos gémeos, Gémeos, Mais que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Acabemos…”
Discernir entre o real e imaginário
O livro é fantástico!
Revela o sofrimento de um indivíduo sufocado por conflitos psicológicos com dificuldade de perceber as diferenças entre o real e o imaginário.
Mostra, na forma literária, sem se ater a estudos aprofundados da psiquiatria o quanto a mente é capaz de criar situações inimagináveis, conflituosas e devastadoras da felicidade.
Para os não acostumados a Saramago, vale um lembrete: o autor se expressa com uma linguagem singular, cujo texto traz características próprias e requer atenção do leitor.
José de Souza Saramago
O escritor, tradutor, jornalista, poeta, cronista, dramaturgo, contista, romancista, teatrólogo e ensaísta José de Souza Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga, província do Ribatejo, Portugal, no dia 16 de novembro de 1922.
Faleceu, aos 87 anos, na sua casa em Tías, Província de Las Palmas, Lanzarote, comunidade autônoma das Ilhas Canárias, no dia 18 de junho de 2010, vítima de leucemia crônica. Foi cremado e as cinzas foram depositadas ao pé de uma oliveira, na cidade de Lisboa no dia 18 de junho de 2011.
Prêmios
Saramago recebeu vários prêmios dentre eles o Nobel de Literatura de 1998 e o Camões de 1995. Foi condecorado com Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 1985, e o Grande-Colar da mesma Ordem, em 1998. Esta última honraria é concedida, normalmente, a chefes de estado.
O prêmio Camões foi instituído, em 1988, pelos governos do Brasil e Portugal outorgado a autores de língua portuguesa, pelo conjunto da sua obra e o Prêmio Nobel de Literatura foi instituído, em 1901, para premiar autores, de qualquer nacionalidade, que a sua obra tenha contribuído para o pensamento coletivo.
José Saramago recebeu, também, os seguintes prêmios: Cidade de Lisboa (1980), Literário Município de Lisboa (1982), P.E.N. Clube Português de Novelística (1983, 1985), D. Dinis (1984), Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1985), Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 1991, Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa (1991), Grande Prémio Vida Literária APE/CGD (1993), Gold Medal.svg Prémio Camões 1995 e Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores (1995).
Linguagem e estilo
José Saramago se caracteriza pela utilização de um estilo oral. Preferiu se expressar na forma escrita com a animação característica dos contos populares de tradição oral. Preferiu a dinâmica da comunicação em detrimento da correta ortográfica formal.
A forma escolhida para desenvolver o raciocínio e exibir argumentos característicos da linguagem oral se impõe no estilo convincente.
Utiliza frases e períodos alongados, com pontuação nada convencional, que resulta em diálogos entre personagens sem a separação tradicional de travessões usuais para distinguir os diálogos de cada um dos interlocutores. Esta forma utilizada pelo autor conserva o leitor atento à história, contudo, em determinados momentos pode confundi-lo.
As citadas características tornam o seu estilo único na literatura moderna, destacando-o como um inovador no tratamento da língua portuguesa.
Relacionamentos
O primeiro casamento foi aos 25 anos com Ilda Reis. Deste relacionamento resultou o nascimento da filha Violante dos Reis Saramago. Durou de 1944 a 1970.
De 1970 a 1986 Saramago viveu com a escritora Isabel da Nóbrega.
O último relacionamento foi com a jornalista e tradutora espanhola María del Pilar del Río Sánchez, que conheceu em 1986. Viveu a seu lado de 1988 até a morte do autor.
Crença, Política e foco literário
Saramago se dizia ateu e faz crítica à Igreja por entender encontrar-se a serviço dos tiranos. Fala de religião como um fenômeno de fantasias humanas. E diz que os episódios de violência relatados na Bíblia, como sacrifício de Isaque, a destruição de Sodoma ou a vida de Jó, por exemplo, revelam que “Deus não é de fiar”.
A Igreja Católica criticou a publicação do livro ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’, em 1991, devido à releitura que Saramago faz do personagem Jesus. Fez críticas, também, quando da publicação de ‘Caim’, em 2009.
Foi membro do Partido Comunista Português.
Posicionou-se sempre atento às injustiças e vigilante das mais diversas causas sociais. Não se cansava de questionar valores sociais.
Criou, em 2007, a Fundação José Saramago para a defesa e difusão da Declaração Universal dos Direitos Humanos e defesa do meio ambiente. Mais tarde, em 2012, sua mulher Pilar del Río abriu as suas portas da fundação ao público na Casa dos Bicos em Lisboa.
Apesar das crônicas e peças teatrais Saramago se destacou com os temas abordados em seus romances.
Em ‘Levantando do Chão’ o autor retrata as dificuldades da população pobre do Alentejo.
Em ‘Memorial do Convento’ retrata o contraste entre a abastada aristocracia e o povo trabalhador.
Em seguida Saramago publicou livros cujos temas se referem a pessoas, fatos e questionamentos religiosos: ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’ (1985), sobre as andanças do heterônimo de Fernando Pessoa por Lisboa; ‘A Jangada de Pedra’ (1986), em que se questiona o papel Ibérico na então CEE através da metáfora da Península Ibérica soltando-se da Europa e encontrando o seu lugar entre a velha Europa e a nova América; ‘História do Cerco de Lisboa’ (1989), onde um revisor é tentado a introduzir um “NÃO” no texto histórico que corrige, mudando-lhe o sentido; e ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’ (1991), no qual Saramago reescreve o livro sagrado sob a ótica de um Cristo que não é Deus e se revolta contra o seu destino.
Saramago deu início a nova fase publicando seis romances com tramas que abordaram os caminhos da sociedade contemporânea: Ensaio Sobre a Cegueira (1995); Todos os Nomes (1997); A Caverna (2001); O Homem Duplicado (2002); Ensaio sobre a Lucidez (2004); e As Intermitências da Morte (2005).
Obras publicadas
Saramago publicou os romances Terra do Pecado (1947), Manual de Pintura e Caligrafia (1977), Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982), O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio Sobre a Cegueira (1995), Todos os Nomes (1997), A Caverna (2000), O Homem Duplicado (2002), Ensaio Sobre a Lucidez (2004), As Intermitências da Morte (2005), A Viagem do Elefante (2008), Caim (2009), Claraboia (2011) e Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas (2014).
Publicou as crónicas: Deste Mundo e do Outro (1971), A Bagagem do Viajante (1973), As Opiniões que o DL Teve (1974) e Os Apontamentos (1977).
Produziu as seguintes peças teatrais: A Noite (1979), Que Farei com Este Livro? (1980), A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987), In Nomine Dei (1993) e Don Giovanni ou O Dissoluto Absolvido (2005).
Publicou os contos Objeto Quase (1978), Poética dos Cinco Sentidos – O Ouvido (1979) e O Conto da Ilha Desconhecida (1997).
Publicou as poesias: Os Poemas Possíveis (1966), Provavelmente Alegria (1970), O Ano de 1993 (1975).
Diário e Memórias: Cadernos de Lanzarote (1994) e As Pequenas Memórias (2006),
Literatura infantil: A Maior Flor do Mundo (2001), O Silêncio da Água (2011).
Viagens Viagem a Portugal (1983).
Referência bibliográfica
Saramago, José, 1922-2010
O homem duplicado: romance / José Saramago – Companhia das Letras – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
ISBN 978-85-8086-491-5
1. Romance português. I. Título.