Ao falar a respeito do livro Recordações da Casa dos Mortos convém comentar o ocorrido com o autor, antes da experiência que teve como presidiário.
Conceito imaginário
A Europa enfrentava conflitos sociais. Vivia um sonho libertário e o socialismo aparecia como alternativa utópica, para acabar com o feudalismo existente na Rússia.
Ainda jovem, Dostoiévski, envolveu-se na conspiração do revolucionário Mikhael Petrachévski, que tinha como propósito assassinar o Czar Nicolau I.
Apesar de negar o seu envolvimento, o autor foi preso em 1849 e condenado a morte.
Com vinte graus abaixo de zero, vestindo uma túnica mortuária, o condenado foi amarrado em poste na Praça Semionovski e experimentou a desagradável sensação que antecede uma execução: padres, fuzis, tambores, etc
A Sibéria como alternativa
Depois do completo ritual, lhe foi revelado que a punição inicial havia sido substituída por prisão e trabalhos forçados na Sibéria.
No presídio, o protagonista, considerado nobre, convive com criminosos comuns e vivencia, possivelmente, a maior e mais inesquecível experiência de sua vida.
Rejeitado por uns e cortejado por outros, passa quatro anos sofrendo com o frio, precárias instalações, deficiente alimentação e com o tormento de nunca poder ficar sozinho.
Os detentos eram retraídos, desconfiados, invejosos, valentões e extremamente insensíveis.
Psicologia criminal
As observações do autor a respeito do comportamento humano em situações de culpa enriquecem a obra e remete o leitor à análise de modelos de punições, aparentemente corretivos, mas, que pra nada servem.
“Não resta dúvida de que o tão gabado regime de penitenciária oferece resultados falsos, meramente aparentes. Esgota a capacidade humana, desfibra a alma, avilta, caleja e só oficiosamente faz do detento “remido” um modelo de sistemas regeneradores.”
Momentos do bem e do mal, do crime e da culpa
Procura uma resposta para a prática do crime, independente da classe social que o homem está inserido, e, se não bastasse, analisa a si próprio.
“Mas o tempo fluía e dei em me habituar gradativamente. À medida que os dias passavam, as realidades cotidianas iam me irritando menos. Os meus olhos, por assim dizer, se iam habituando aos acontecimentos, ao ambiente e aos homens.”
A esperança e as estações do ano
“Quando o sol brilha, a gente pensava na liberdade muito mais intensamente do que nos dias cinzentos do outono e nas horas opacas do inverno.”
Crítica à barbárie
Além das observações sobre os criminosos, o texto critica as atrocidades praticadas pelas autoridades do presídio.
O trabalho forçado, sob condições desumanas, o uso dos grilhões, mesmo nos doentes prestes a morrer, e os castigos exagerados tomam lugar de destaque, a exemplo do relato de um açoitado.
“É, atroz, dá a impressão de fogo aplicado demoradamente na pele. Assa as costas como uma grelha.”
Barreiras do intelecto
A narrativa revela as dificuldades nas relações entre pessoas de diferentes classes sociais e insere o protagonista no contexto, ao procurar refúgio no hospital, simulando doença, simplesmente para escapar do convívio indesejado.
O texto é um marco histórico na literatura mundial, até porque, segundo se comenta, iniciou a melhor fase do autor.
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski
Nasceu em Moscou, Rússia, no dia 11 de novembro de 1821. Foi o segundo filho do casal Mikhail Dostoiévski e Maria Fiodorovna.
Sua mãe morreu, de tuberculose, quando Dostoiévski tinha 15anos, deixando ele e seis irmãos em companhia do pai. Motivados pela depressão e ao alcoolismo do pai, ele e um dos irmãos foram para a Academia Militar de Engenharia de São Petersburgo.
Existem registros que afirmam que Mikhail foi assassinado por seus servos revoltados com os maus tratos. Outros asseguram que a morte se deu em consequência de um acidente vasculhar.
Fiódor Dostoiévski desejou a morte do pai, por não concordar com o seu jeito autoritário e este fato terminou causando sentimento de culpa e exercendo influência na sua obra.
Morreu em São Petersburgo no dia 9 de fevereiro de 1881, aos 59 anos.
Formação acadêmica
Fiódor Dostoiévski concluiu seus estudos de engenharia em 1843 e obteve a patente de tenente militar. Aprendeu física, matemática e literatura. Estudou as obras do alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann, dos franceses Blaise Pascal e Victor Hugo, e do inglês William Shakespeare.
O escritor francês Honoré de Balzac visitou Dostoiévski em São Petersburgo, em 1844, e a visita resultou em uma tradução o primeiro grande romance de Balzac. Com o dinheiro recebido pelo trabalho quitou uma dívida que tinha com um agiota e despertou a sua vocação pela literatura. Fez outras traduções dentre as quais romances de George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin) considerada uma das maiores escritoras memorialista francesa e precursoras do feminismo.
Início da obra literária
Em 1844, Dostoiévski deixou o exército e dedicou-se exclusivamente à escrita, iniciando o romance epistolar (na forma de carta) ‘Gente Pobre’, que recebeu elogios de influente crítico literário russo, que o considerou uma obra realista com importante visão social. O livro foi publicado em 1846, quando o autor possuía, apenas, 24 anos.
Ainda em 1846 surge o segundo romance titulado ‘O Duplo’ cujo protagonista se apresenta com dupla personalidade. Possivelmente, fruto das perturbações sofridas por Dostoiévski que forma confundidas, na época, como crises epilépticas. Há quem afirme que o escritor sofria de crise histérica. O escritor inclui a epilepsia nas histórias dos seus personagens, como o príncipe Míchkin (“O Idiota”), Kiríllov (“Os Demônios”) e Smerdiákov (“Os Irmãos Karamázov”).
Dostoiévski sofre um revés da crítica ao escrever, em 1848, ‘Noites Brancas’ e ‘Niétochka Nezvánova’. Essas obras enfatizaram o comportamento psicológico dos personagens.
O escritor volta a surpreender quando do seu retorno da Sibéria, onde estava preso, com o livro ‘Recordações da Casa dos Mortos’, publicado em 1862. O respeitado escritor Levi Tostói fez excelentes elogios à obra.
‘Crime e Castigo’, publicado em 1866 e o seu último romance ‘Os Irmãos Karamazov’, publicado em 1881, consagram o escritor com um dos mais influentes da Rússia. O último romance foi considerado pelo criador da psicanálise Sigismund Schlomo Freud como o romance mais bem escrito.
Foco nos conflitos mentais
Por ser uma obra atemporal, muito do modernismo literário e da escola teológica e psicológica sofreu influência da obra do autor. Versa sobre aspectos do estado de espírito que leva ao homicídio, ao suicídio, à loucura, ao sofrimento e por que não dizer à autodestruição.
Neste contexto a obra que recebe os nomes de ‘Memórias do Subsolo”, publicada em 1864, é vista como um marco existencialista. Segundo o filósofo alemão Walter Arnold Kaufmann trata-se da “melhor proposta para o existencialismo já escrita”.
Expatriação na Sibéria
Por participar de reuniões do grupo intelectual Círculo Petrashevski e ter lido em público uma carta aberta do escritor e filósofo russo Vissarion Grigorievich Bielinsk dirigida ao escritor, também russo, Nikolai Gogol criticando-o por suas visões políticas e sociais conservadoras, Dostoiévski foi acusado de conspirar contra o imperador Nicolau I da Rússia e Grão-Duque da Finlândia. O Círculo Petrashevski se dedicava a debater as condições de vida na Rússia.
Em 23 de abril de 1849, o escritor foi preso juntamente com outros membros do Círculo Petrashevski. Passou oito meses na Fortaleza de Pedro e Paulo até que, em 22 de dezembro, houve a sentença de morte por fuzilamento.
Em 23 de dezembro, o escritor foi levado ao lugar da execução juntamente com outros membros do grupo e amarrados aos postes em frente ao pelotão. Antes da execução por fuzilamento, chegou uma ordem do Czar para que a pena fosse substituída por prisão com trabalhos forçados e exílio, na Sibéria.
Após a prisão, Dostoiévski começou a contemplar a vida como um dom extraordinário, ao contrário do determinismo e do pensamento materialista. Valorando a responsabilidade individual, a integridade física e mental além da liberdade.
Na prisão, o escritor observa que mesmo em um ambiente completamente inóspito as diferenças sociais existiam.
A soltura de Dostoiévski ocorreu em 1854 condicionada à prestação de serviço no Sétimo Batalhão, por quatro anos, na fortaleza de Semipalatinsk, no Cazaquistão, além de tornar-se soldado por tempo indefinido.
Casamentos, jogos e dívidas
Dostoiévski casou-se em fevereiro de 1857 com Maria Dmitriévna Issáieva, mulher pela qual ele havia se apaixonado quando esposa de um conhecido. Com a morte do marido de Maria a união pode ser concretizada. Ela possuía um filho de oito anos e sofria de tuberculose.
Entre 1862 e 1863, viajou a Berlim, Paris, Londres, Genebra, Turim, Florença e Viena. Durante o período das viagens se relacionou com Paulina Súslova, uma estudante de ideias progressistas. Retornou a Rússia sem recursos por ter perdido todo dinheiro em jogos de azar.
Desanimado pela morte de sua esposa e do irmão, teve que sustentar a viúva do irmão e seus quatro filhos, além do enteado Pável Issáiev e o irmão, alcoólatra, Nikolai.
Conheceu a jovem estenógrafa de vinte e quatro anos, Anna Grigórievna Snítkina, e terminou se casando 15 de fevereiro de 1867.
Herança literária e reconhecimento
Dostoiéviski ao lado de Dante Alighieri, William Shakespeare, Miguel de Cervantes, Johann Wolfgang von Goethe, Luís de Camões, Victor Hugo são tidos como escritores que influenciaram sobremaneira a literatura do século XX. Particularmente, Dostoiévski influenciou as obras dos escritores Hermann Hesse, Marcel Proust, William Faulkner, Albert Camus, Franz Kafka, Yukio Mishima, Roberto Arlt, Ernesto Sábato e Gabriel García Márquez.
A obra
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévskié é autor dos romances Gente Pobre (1846), O Duplo (1846), Noites Brancas (1848), Netochka Nezvanova (1849), O Sonho do Tio (1859), Aldeia de Stiepantchikov e seus Habitantes (1859), Humilhados e Ofendidos (1861), Recordações da Casa dos Mortos (1862), Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Jogador (1867), O Idiota (1869), O Eterno Marido (1870), Os Demônios (1872), O Adolescente (1875) e Os Irmãos Karamazov (1881).
Escreveu as novelas e os contos Senhor Prokhartchin (1846), Romance em Nove Cartas (1847), A Senhoria (1847), Polzunkov (1848), Coração Fraco (1848), O Ladrão Honesto (1848), Uma Árvore de Natal e uma Boda (1848), O Homem Debaixo da Cama (1848), Noites Brancas (1848), O Pequeno Herói (1849), Uma História Lamentável (1862), O Crocodilo (1865), Bóbok (1873), Uma Criatura Gentil (1876), O Mujique Marei (1876), e O Sonho de um Homem Ridículo (1877).
Referência bibliográfica
Dostoiéviski, Fiódor, 1821-1881.
Recordações da casa dos mortos / Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski;
tradução de José Geraldo Vieira. – São Paulo: Martin Claret, 2006.
Título original: Zapiski iz mertvogo doma.
ISBN 85-7232-7’6-9.
308p.
1.Romance russo I. Título.
(R)
Otimo comentário, vlw.
“Quando o sol brilha, a gente pensava na liberdade muito mais intensamente do que nos dias cinzentos do outono e nas horas opacas do inverno.”
Esplêndido.
Assim com existem belas músicas que retratam o estado em que se encontrava o compositor. A exemplo desta, existem belíssimas obras literárias que deixam evidente o estado psicológico de situações vividas pelo autor.
Vale a pena conferir tal obra de Fiódor.
Úrsula Nunes