O texto atrai a atenção do leitor do início ao fim da história. A forma que a autora desenvolve os dois temas – escravidão e ditadura militar – permeando-os no seio de uma família tradicional mineira, certamente, é inovadora e consistente.
Tortura, sofrimento e desrespeito
A narrativa liga ocorrências da história do país e exige reflexão sobre as aberrações praticadas pelos senhores proprietários de escravos, amparados por governos constituídos, e as torturas praticadas por forças repressoras, apoiadas por parte da população ludibriada por segmentos religiosos, sociais e políticos, que não esperavam, possivelmente, vivenciar momentos cruéis de coibição democrática.
Apesar do distanciamento histórico, político, econômico e social existentes entre os dois fatos, certamente, eles se unem no contexto do sofrimento humano, na tortura e no desrespeito aos direitos da vida.
Uma das diferenças entre eles é determinada pelo fato dos escravos terem sido, publicamente, sovados nos pelourinhos, como resultado de punições, enquanto no regime totalitário as torturas ocorriam nas mais diversas formas, ocultas nos porões das estruturas policiais.
Enquanto os escravos sofriam na busca da liberdade os presos políticos padeciam no silêncio para preservarem os ideais.
O passado para cura
Sobre a descoberta do passado, a autora chama a tenção para a necessidade de decantar a dor para poder entende-la.
“— Quem você mais gostaria de entrevistar? — perguntou certa vez uma colega na redação.
— Meu pai — respondeu ela sem tirar os dedos do teclado nem os olhos da tela do computador.
— Seu pai? Você perguntaria sobre as circunstâncias da morte? É isso que você gostaria de perguntar a ele, se pudesse?
— Não. Queria saber das circunstâncias da vida — respondeu com voz triste.
A colega se afastou com cara de quem sabia ter tocado em mais uma ferida daquela pessoa esquiva.
Agora lembrava a frase poética dita no sonho. Inicialmente, decantar a dor para entendê-la, mas não esperar tempo demais porque o passado precisa passar.”
Ser vítima é uma escolha?
“…Parem, pelo amor de Deus! Vocês estão discutindo desde a década de setenta, infernizando os encontros de família. Vocês dois foram vítimas de uma época — implorou Maria José.
— Vítimas, mãe? Como você pode achar que nós dois somos iguais? Enquanto Hélio estava seguro na sua vida de soldadinho, eu estava sendo torturada pelos colegas dele. Só há uma vítima aqui, e não finja que não sabe a diferença porque é mãe dos dois. Eu arrisquei minha vida por este país; o seu filho estava do lado dos que tomaram o aparelho do Estado e o usaram contra os cidadãos.”
A comparação entre a escravidão e as torturas do regime militar, também, são exaltadas no texto.
“Não era o passado que vinha visitar, nem era o presente. Andou pelo enorme porão, vendo no chão e nas paredes apenas marcas. Onde vira argolas de ferro em que se penduravam escravos, havia buracos, como se os instrumentos de tortura tivessem sido arrancados dali. E um silêncio compacto se espalhou. Ela andou, olhando as teias de aranha iluminadas pela luz que entrava pelos buracos. Tempo da vida morta. Não parecia haver vivente naquele espaço. O vasto salão sem alma, dividido em dois cômodos. No fundo do último, ainda estava a mesma grade que vira desde o primeiro dia que descera ao porão. Ela fechava uma cela de pequenas dimensões. Sentou em frente à cela e imaginou o sofrimento de quem ficou ali. Passou suavemente a mão na grade, solidária com quem fosse, com quem tivesse estado por um minuto sequer naquela gaiola. Por quantos anos ela confinou pessoas? O sofrimento longo ficara impregnado como uma gosma, como um fantasma maldito. Como fora possível ao Brasil conviver com essas coisas por três séculos? A escravidão, os açoites, a tortura e a prisão de quem se rebelava. A dor aguda, profunda, impressa naquelas paredes, nos ferros das barras, permanecia. ”
Vitória incompleta
Sobre as vitórias e as desculpas referentes à escravidão.
“A verdade é que seu povo sempre lutará. De todas as formas. Não houve uma, e sim várias vitórias. Não houve uma, e sim várias derrotas. Depois da escravidão em si, virão outras formas de negação ao seu povo. A pobreza, o abandono, novas formas de exclusão. A verdade será dissimulada, as explicações, oblíquas. Surgirão teses de que a escravidão aqui foi mais suave e que as divisões se atenuaram pela assimilação e mistura dos povos que desembarcaram pela força ou pela vontade. No país dos meios-tons, dirão que não existe a divisão e que tudo foi superado. Será mais uma armadilha, a última, para manter o que precisa ser abolido. Mais de um século depois do fim da escravidão ainda haverá desigualdades, mas a esperança caminhará ao nosso lado. A vitória está vindo aos poucos, não está completa.”
Castas sociais, racismo e preconceito
“Se pudesse levá-lo comigo a ver as cenas que vejo nas ruas, nas empresas, nos restaurantes dos ricos, eu mostraria os vestígios desse passado que tantos fingem não ver. Nas festas das áreas ricas das cidades, os brancos comemoram e confraternizam, e os negros servem e tocam. E circulam invisíveis entre os convidados. Há cenas do nosso cotidiano tão intensamente arcaicas que eu teria pudor em mostrá-las porque parecem o passado do qual precisamos nos livrar.”
Luta pela liberdade
“Não sabemos da vasta multidão de pessoas que, em cada pedaço do Brasil, travou sua batalha solitária. Na verdade, é essa longa teia de resistência que permite a vitória, mas a História é cruel com os anônimos.”
A paz corre como um rio
“A paz não brota em tempos extremos. Há escolhas e preços. Conflitos. A paz chega um dia, como os rios correm calmos após vencer as cachoeiras e o tumulto das corredeiras. Primeiro, as águas se precipitam no vazio como suicidas; em seguida confrontam as pedras; por fim, o rio se acalma. Impossível a paz logo após as grandes quedas, porque é o momento em que o solo é revolvido e lavado. Hora da luta dos contrários: rio e pedra. Depois vem, quem sabe, a conciliação.”
Tirania, nunca oficial
“A liberdade chega aos poucos, como se fosse necessário aos que sofreram ir aplainando o chão, conquistando palmo a palmo o caminho. Nenhuma ordem tirânica acaba no seu fim oficial. Nada é como nas datas dos livros de História e dos feriados nacionais. Ela permanece em seus vestígios e ardis, em seus nunca ditos e sempre negados.”
Mírian Leitão preocupa-se não só com o contexto econômico e político que estimularam os dois movimentos, mas, especialmente, em revelar o sofrimento humano e as trincas familiares dos envolvidos.
Assim como os escravos sovados nos pelourinhos não tinham a quem recorrer para alterar a situação do castigo, os rotulados, pele ditadura militar, como “inimigos do país”, encarcerados, sofriam sofisticadas torturas físicas e psicológicas que ultrapassavam a marca do sadismo.
Tortura e sadismo
Ao que parece, os torturadores esqueciam o motivo da investigação e buscavam conhecer os limites da tolerância psicológica e física, resultando no assassinato de jovens iludidos com sistemas de governos, também totalitários e criminosos, que prometiam justiça social.
Independente dos motivos usados para justificar a repressão, nada, absolutamente nada, justificaria as torturas de jovens que os levaram à morte.
O texto é irretocável.
Constitui uma excelente contribuição para a vigilância de movimento político, principalmente de representantes partidários que declaram dispostos a praticarem qualquer coisa para se manterem no poder.
Miriam Azevedo de Almeida Leitão
Nasceu em Caratinga, Minas Gerais, Brasil.
É jornalista formada na Universidade de Brasília, trabalhou nos jornais Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo, e O Globo.
Atua na TV, rádio, jornal e mídia digital.
Recebeu diversos prêmios: Jornalismo para Tolerância – 2003 (Federação Internacional de Jornalistas – FIJ), Orilaxé – 2003 (Grupo AfroReggae), Ayrton Senna de Jornalismo Econômico – 2004, Camélia da Liberdade – 2005 (Ceap – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), Maria Moors Cabot Prize – 2005 (Escola de Jornalismo da Universidade de Colúmbia), Jornalista Econômico 2007, concedido pela Ordem dos Economistas do Brasil, e o Prêmio Jabuti – 2012. Publicou os livros Convém Sonhar (2010), Saga Brasileira (2011), A Perigosa Vida dos Passarinhos Pequenos (2013), A Menina do Nome Enfeitado (2014), e Tempos Extremos (2014).
Referência bibliográfica
Tempos extremos, Leitão, Miriam Azevedo de Almeida, 1953 –
Editora Intrínseca Ltda. – Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar, Gávea, Rio de Janeiro – RJ.
Formato: ePub
Edição digital: 2014
E-ISBN – 978-85-8057-524-8
1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título. II. Título: Escravidão III. Ditadura Militar.